sábado, 20 de abril de 2024

Todo o dia

Todo o dia me lembrei de que naqueles dias tinhas a fronte vincada em profundas e verticais rugas e que consternado me chamaste junto aos teus joelhos e me falaste do teu quase desespero, quase derrota final; disseste-me que seguias por teus filhos somente. Hoje, meu pai, minha sólida âncora, estão em mim as mesmas rugas é a minha vez de não desistir.

Pai, lembro-me...

… de quando estivemos juntos no Recife, em Salvador da Bahia, em Belo Horizonte, em Brasília e no Rio de Janeiro. Levaste-me a conhecer todos esses lugares, do Brasil que tanto amaste. Sei que o meu olhar exaltado sobre as amplas paisagens, sobre as ruas de traça colonial, sobre as arrojadas maravilhas arquitectónicas, não diferia muito do teu próprio. O teu era um olhar de encantamento, de amor incondicional. Tão irredutível que repetias o duvidoso slogan que nos levava a discordar: “Ame-o ou deixe-o!” Mesmo quando eu ainda retinha a visão da miséria pernambucana e da repressão militar, não te contrariei, porque sabia que laços te envolviam, eternamente: o destino de emigrante dera-te uma filha dessa terra. Mesmo muito depois de retornares ao torrão natal, continuaste de longe a seguir os detalhes da vida desse grande País, que fizeste teu. Quão fantástico seria repetirmos essa nossa viagem, abraçados num voo impossível, quão rica seria hoje a nossa conversa! (19 de março de 2024)